Trinta e uma e a hiena
Contam e dão conta de que havia trinta homens e uma mulher (moça? menina?). A polícia, o padre, o poste e o paradoxo confirmaram, outros negaram, câmeras filmaram na manhã escura que amortecia a noite na Zona Oeste de uma cidade no faroeste das pragas.
Trinta homens contra uma mulher, sobre uma moça, dentro de uma menina. O pranto da manhã jorrando no espelho e nos hematomas que saltavam das páginas do jornal. Os reflexos do baile, o coro "rasga os sonhos, rasga ela, rasga o coração" que descia do bater de asas dos urubus misturando-se à carniça, as cobras no cio, formigas dançando no ventre.
Dizem que provocou, que mereceu, que se desgraçou a desgraçada e nem sentiu dor. Dizem tanto que turvam a nuvem que o espasmo mandou para lavar o colchão. Mas como traduzir diante das culpas, dos guinchos e relinchos, o sorriso arrogante daquela hiena?
Sorrisos
Na recepção do hospital, em Copacabana, duas menininhas – entre seis e sete anos – em tratamento contra o câncer.
Estão sentadas lado a lado. Uma está inteiramente careca, a outra ainda tem uns fiozinhos.
A que já não os possui alisa a cabeça da outra, dedos delicados entre os fiapos, misto de admiração e ternura.
Elas sorriem.
Aquelas menininhas sorriem.
Fogo
Ajoelhada sobre os calcanhares, apoiada nas juntas dos dedos magros, cotovelos rotos, a pequena vendedora de doces cochila sobre os sonhos.
A pausa é incerta, o trabalho insano, a vigília aumenta o cansaço.
A menina sabe que nuvens pesadas desabam de repente, que o fogo propaga, os sinais vermelhos são todos acesos ao mesmo tempo.
E os pombos da rua gritam: “Corre, miúda, que já te viram”.
Erro
Obrigada a identificar o corpo do marido na geladeira do necrotério, a mulher se curva diante do tempo, do orgulho ferido, do despautério, do que faltou do amor e sobrou de desterro.
Então, confessa com horror o horror:
Eu identifico, doutor. É ele, é ele, o meu erro.