SILVÉRIO DUQUE

Silvério Duque, é um feirense de 31 anos, do signo de áries, cavalo no zodíaco chinês, dedicado as artes, em especial a música e a poesia, que convicto de suas escolhas, assim se define: "sou poeta, nasci em Feira de Santana, aos 31 de março 1978. Sou licenciado em Letras Vernáculos, pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Além da poesia, assumo as atividades de músico, clarinetista, já coordenei a Escola de Música da Sociedade Filarmônica Euterpe Feirense, aliás, as bases de minha formação musical advém das Filarmônicas; sou professor, crítico literário, escrevi e escrevo para vários jornais e revistas e sou autor de dois livros de poesia O crânio dos Peixes, ( Ed MAC, 2002 ) e Baladas e outros aportes de viagem, ( Edições Pirapuama, 2006 ). Meu próximo livro, Ciranda de Sombras, está no prelo.", no seu blogger, onde publica seus poemas e onde realiza sua críticas, ou como ele próprio diz suas "...considerações sobre a Arte e, principalmente, Literatura, as quais, obviamente, estão sujeitas às mais diversas críticas que serão devidamente aceitas, desde que feitas com inteligência, elegância e respeito." Silvério Duque, ainda no seu perfil disponibiliza todo o material de seu blogger, contanto que o credito seja dado a transcrição do trabalho.
O que Silvério Duque não pode falar de si ou do seu trabalho, é da competência e abnegação que ele demonstra quando executa uma canção no seu clarinete ou na sua gaita, ou na sensibilidade que ele coloca em seus versos, o que faz merecer o acompanhamento do blogger do artista para entender seu trabalho e suas escolhas.

SILVÉRIO DUQUE

Por amigos...

A ESCRITURA DE SILVÉRIO

por Ildásio Tavares*


Um dos momentos cruciais da formação do povo de Israel é quando Jacó assume a pole position, num golpe de mestre que começa com Esaú vendendo-lhe a primogenitura por um prato de lentilhas. Este factóide diz – de pronto – alguma coisa do temperamento e personalidade de ambos. Do imediatismo e gula de Esaú, da sagacidade de Jacó. Mais tarde, esta cessão da primogenitura tem que ser ratificada pelo pai de ambos, Isaac, que teria de dar sua bênção. Aí, Jacó se vale de outro estratagema. Como Isaac estivesse meio cego, Jacó seria apalpado. Esaú era muito peludo e então, Jacó se veste com a pele de um animal e assim consegue se fazer passar pelo irmão que lhe tinha concedido seus direitos.
Ao nomear este belo livro de sonetos finamente escandidos de A Pele de Esaú, quero crer que Silvério Duque tivesse se inspirado neste episódio, ainda mais que coloca a epígrafe da passagem em que o Senhor adverte Esaú que começava a querer-se rebelar, mas que finda por se afastar e criar seu próprio povo longe das doze tribos de Jacó que viriam a formar o reino de Israel. Esaú tinha sido tolo, contudo, era forte e também contava com as bênçãos de Deus. Vinha de uma linhagem cuidadosamente selecionada de Abraão e Sara, para Rebeca e Isaac e que desaguaria nos 12 filhos que Jacó teria com Zilpah, Bilhah, Lia e Raquel, formando o povo eleito, o povo de Israel, até hoje vivo.
Neste meridiano da perda e da rejeição, na figura de um Esaú destituído de seu destino, Silvério elabora uma intricada associação de sentimento e pensamento, buscando a verticalidade de personagens que se multiplicam porque se querem fundir em um só. Afinal, o drama de degredo e aparte que sofre Esaú é de todo ser humano, anjo caído, que um dia se apartou da presença de Deus. E toda odisséia que Esaú tem que executar na busca de si mesmo pode-se configurar em seus aspectos trágicos e cada poema deste livro, pois, discorre sobre um jaez da personalidade humana com este suporte analógico, na verdade.
Mais do que o simples discorrer lírico, em que o poeta se exprime de dentro pra fora, este livro encarna um processo dialógico e dialético em que o poeta entra e sai no personagem e extrai daí o seu significado, num trâmite de intersubjetividade. Esta atitude reforça os aspectos dramáticos do poema e, ao dar voz aos personagens, torna o contexto mais efetivo. Destarte se estabelece um fio condutor que vem conferir unidade ao texto. Aliás, o livro todo é muito bem organizado, com um exato rigor de expressão e de ordenação, todo ele muito coeso, em suas partes, em suas divisões, o que consiste, em verdade, uma cortesia para com o leitor.
Do ponto de vista formal, o livro é impecável. Depois dos primeiros originais, eu recebi mais duas emendas do autor, provando que há um critério e disciplina no sentido do apuro textual, algo que considero fundamental.
Tenho visto inúmeros textos de aspirantes a poetas que não se dão conta que a poesia é a mais perfeita das artes. Apresentam-me, na verdade, um rascunho. Mesmo alguns poetas ditos consagrados mostram-me textos sintaticamente imperfeitos e inçados de cacofonias – poesia é a redação mais elevada. Silvério sabe disto e passa a limpo várias vezes seu texto. Respeita e venera a redação de sua poesia. Por isso pode pôr conflitos no papel com efetividade... Por isso é poeta.

* O baiano Ildásio Marques Tavares é poeta, ficcionista, dramaturgo e jornalista. Segundo nota de Assis Brasil, em A poesia baiana do século XX, pertence à geração Revista da Bahia, juntamente com Cyro de Mattos, Fernando Batinga de Mendonça, Marcos Santarrita, Alberto Silva. Estes, e mais José Carlos Capinam, Ruy Espinheira Filho, Adelmo Oliveira, José de Oliveira Falcón, Carlos Falck, Maria da Conceição Paranhos entre outros "formam um panorama fecundo e variado" a partir da década de 60. Possui vários livros publicados, como Imago, Ditado, O canto do homem cotidiano, Tapete do tempo, Poemas seletos, Livro de salmos, IX Sonetos da Inconfidência, Lídia de Oxum, O amor é um pássaro selvagem, O domador de mulheres, A arte de traduzir... entre outros. É ganhador, entre tantos prêmios, do Leonard Ross Klein, de tradução; do Afrânio Peixoto, de ensaio; do Fernando Chinaglia, de poesia; e do prêmio nacional do centenário de Jorge de Lima. É bacharel em Direito e licenciado em Letras pela Universidade Federal da Bahia; mestre pela Southem Illinois University; doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Seu trabalho como jornalista compreende participação em vários periódicos, entre os quais, Diário de Notícias, Jornal da Cidade, A Tarde e Tribuna da Bahia. Membro praticante do candomblé, foi consagrado Ogan Omi L’arê, na casa de Oxum, e Obá Arê, na casa de Xangô e no Axé Opô Afonjá. Desde 1989 é cidadão da cidade de Salvador

DUAS PALAVRAS SOBRE SILVÉRIO DUQUE

por Gustavo Felicíssimo*

Creio na existência de dois tipos de leituras: a erudita, revelada por autores preocupados em dar ao texto um valor de interesse fundamental; e a vacilante, que engloba as leituras que proporcionam intelecção abstrata, não conferindo nenhuma sacralidade à obra lida. Certamente os poemas deste A pele de Esaú, de Silvério Duque, se inserem dentre aquelas do primeiro tipo, pois foram baseados em uma narrativa bíblica antiqüíssima (sobre a qual Ildásio Tavares discorre muito bem no prefácio da obra), fonte de enigma e sabedoria.
Vale lembrar que nada na trajetória humana foi capaz de inspirar tantas obras de arte, tantos artistas, nas mais diferentes latitudes e longitudes do mundo ocidental, do que a Bíblia. Levando-se em conta que o Livro Sagrado do Cristianismo está no centro da nossa civilização, estranho seria se não fosse assim. E foram muitos os poetas que nela ou no cristianismo se inspiraram, com interesses e motivos vários, de diversas estirpes e épocas distintas, como Camões ou Bruno Tolentino, de quem se pode ouvir o eco na poesia de Silvério Duque, passando por Antero de Quental e Jorge de Lima, até encontrarmos o frescor de A pele de Esaú, uma obra dada ao leitor contemplativo, pois favorece a um recolhimento que possa proporcionar a reflexão adequada em relação ao universo circundante à obra.
Após ler os primeiros poemas deste livro percebi claramente que não se tratava de um compêndio qualquer de poesia, mas de uma obra refinada, alquímica, tecida com engenho e arte, em que o poeta apresenta-nos uma alternância riquíssima de perspectivas e expressões dramáticas do contrário, bem diversa e não apenas catártica, resultando em um canto verdadeiro, uma unidade e uma realidade concreta, não apenas a história evocada, objeto de meditação, mas os dramas pessoais do autor, suas vicissitudes, sonhos e desilusão. Enfim, uma obra muito superior ao que nos vem sendo apresentado pela maioria dos nossos contemporâneos.
Se pudesse resumir A pele de Esaú em uma única palavra, eu diria: inefável!


*Gustavo Felicíssimo
Poeta e ensaísta, Gustavo Felicíssimo, 1971, é natural de Marília, interior de São Paulo, radicando-se na Bahia a partir de 1993. Vive desde janeiro de 2007 entre Itabuna e Ilhéus.
Poeta e ensaísta, tem extensa participação na imprensa baiana e sites brasileiros especializados em literatura. Publicou “Diálogos – Panorama da nova poesia grapiúna, 2009, Editus/Via Litterarum.
Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Atua como preparador de textos para editoras e poetas, tendo colaborado para a publicação dos livros: “Firmino Rocha: poemas escolhidos e inéditos”, Via Litterarum, 2008; “Plínio de Almeida, obra reunida”, Editus, 2009, e “Rascunhos do absurdo”, de Jorge Elias Neto, no prelo.
Edita o blog Sopa de Poesia, onde publica poemas e ensaios, cujo endereço virtual é: www.sopadepoesia.blogspot.com

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(POEMAS DO LIVRO)

Que sabes tu dos frutos, das sementes,
da dureza das flores contra o vento?
A aurora vem tragar a noite espessa
de onde brotou, sem dores, o teu grito.

Se a afirmação do amor nos aborrece,
morrer é mera vocação dos vivos,
pois, no morrer de tudo, há um recomeço.
Não queiras mal ao tempo ou ao espanto;

não queiras mal ao grão, à terra escura...
Que sabes tu das trevas ou da carne?
Que sabes tu das noites, dos princípios?

Hoje, é chegado o tempo dos retornos
e toda forma espera o seu ofício
como o vaso existente em todo barro.


...uma Canção de amor, para Lucifrance Castro

Teu sorriso, na foto, envelheceu –
envelhecemos juntos... Tudo passa:
o que se achou perdido entre a gaveta
e os sonhos, as carícias no teu rosto,

a noite derramando-se em ternura
e sono, o amanhecer que partilhamos...
Tudo passa; até mesmo a tua ausência
e a saudade que trago de quem somos.

Mas, mesmo na saudade, há dor e abrigo;
vontade de ficar e desespero.
O teu sorriso envelheceu comigo,

e, eternamente, se entrelaça em mim,
pois, contra o tempo que nos aniquila,
há a persistência viva das lembranças.

Candeias, 13 de dezembro de 2009.

( penso no fogo e o fim de tudo
é pesado sobre os meus ombros
e, entre os silêncios mais esplêndidos
perdi meu nome... achei escombros

a vida, este sopro entre as cinzas
onde, na dor, Tu te divisas

vai se acabando, tudo passa
e o que deixarei para trás
não importa, tudo é ilusão

mas a alma, em vão, vê e deseja
a oração do tempo e esta igreja... )

tudo é tão terrível, Senhor
estes silêncios colhendo as orações e os frutos
a temeridade presente na Beleza
a navalha despertando a carne
o coração que bate
o pulso aberto
este morrer de tantas coisas
a indagação da Eternidade
a dúvida
o chão
a chuva
o barro paciente
o vazo que em todo barro existe
o oleiro
o instante fugaz como
todo instante
o instante fugaz como tudo
a noite
as estrelas
o dia sem nuvens
o corpo
o outro corpo
o espaço
a medida
o campo
as reses
a vida a brotar da morte de toda semente
o mover de tudo
o musgo
os muros
ainda que eu veja tudo
e esteja em tudo
toda mentira me é pouca
o passado
o porvir
a dor que trago agora
o peito
o braço
o olho
o sexo
os pés
o mar
o céu
( mas entre o mar e o céu o abraço insano )
o mar
o céu
( dois infinitos que no Azul se inflamam )
o mar
e o céu
( este mútuo espelhar entre os eternos )
as estrelas no espaço
tristes
o afastamento
o encontro
o martírio
o amor
a renúncia
o Minotauro
a falsa fé de Minos
as asas de Ícaro
Pasifae
o Touro
o Labirinto
o muito perder-se de Dédalos
a Esfinge
o enigma
o precipício
( esta mulher, Senhor
meu naufragar em seu corpo
o seu cheiro
a sua carne
o seu delírio
o suor
o gozo
as entranhas
toda ela e tudo... )

E sempre, em meu olhar, o mesmo rosto,
a mesma noite, o mesmo labirinto.
O anjo que eu vi cair, já recomposto,
evola-se na luz – Eu não o pressinto...?

Avistei-o, através deste sol-posto,
sob o livor da morte e meus instintos,
ardente e triste sobre os céus de agosto
como as coisas que vi e agora sinto,

pois maior é o Mistério à minha frente.
( Nesse vento indo e vindo pelas portas,
eu penso em Deus e nada está ausente... )

– Somos memória e a morte a todos corta,
meu irmão Esaú precito e crente,
mas só a visão de Deus é o que te importa.


Candeias, 01 de fevereiro de 2010.

Seg, 26-Abr-2010 8:11

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A BALADA DE INÊS...

Súplica de Inês de Castro de Vieira Portuense. Óleo sobre tela (165X275); Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

– Verás, amada minha
tuas mãos terminadas em segredo
sobre um peito de sopros findos
e então sentirás dentro de ti uma completude
como as folhas que mortas deixam nua aquela essência de vida
que as árvores nos trazem sobre os galhos
secos e escuros, como a carne que à terra volta
pois é da terra a carne, como do vento
a nuvem e sua possível imagem.

Também verás
os teus olhos fechados em repouso
e, na noite escura dos desejos sólidos
velar teu sono, com mil olhos claros
o coração que sofre de amor e de saudade e
que um dia, em tarde clara disse-te em segredo
“Amo-te!”, como ama em segredo, ao sentimento, a Sabedoria
pois é do mar o cais e a imensidão
que amedronta e também encanta.


Nesse momento, amada minha
quando fechada sobre um leito de duras sombras
combinadas: a dor, a ausência e a distância
na noite imensa de teu coração tão quieto
verás o meu Amor refeito em sonho leve
e toda a realidade te parecerá vazia,
como um Céu que um dia olhaste sem ternura e sem verdade...

DA OLARIA À OURIVESARIA: ALOÍSIO RESENDE & O BIG BROTHER BRASIL DOS INTELECTUALÓIDES

Aloísio Resende (1900-1947)...

Nuestras convicciones más arraigadas,

más indubitables, son las más sospechosas.

Ellas constituyen nuestro límite, nuestros confines,

nuestra prisión.

ORTEGA Y GASSET

Parece-me, caro leitor, que a biografia moderna considera o homem em todos os seus aspectos, buscando fixar a humanidade do seu personagem. Pelo menos é o que afirma Edvaldo Boaventura em seu No Território da Palavra; seu objetivo “é a transmissão verídica de uma personalidade”; buscando o homem com as virtudes e os defeitos inerentes a raça humana. Mas, no fundo no fundo, em termo do que interessa realmente à poesia, estes aspectos estão mais para um Big Brother Brasil dos pseudo-intelectuais do que verdadeira ciência e literatura.

Olhem o caso de um Augusto dos Anjos, por exemplo: nem um poeta de nossas Letras foi mais vitimado pelos estereótipos do que ele – estereótipos esses advindos tanto dos leitores ingênuos como da crítica dita especializada, mas que nada mais é do que uma propagadora de tolos ideais etnocêntricos e multiculturalistas que pouco ou quase nada acrescentam à poesia e à sua verdade estética. O poeta paraibano, por mais que fosse, à sua maneira, um revolucionário, dono de um artesanato poético sem precedentes em nossa história, quase sempre foi focalizado como um tuberculoso sofredor e depressivo; um anti-herói errante em sua própria angústia e dor, representado, como diria Antônio Houaiss, por “versos herméticos, onde, por vezes, se escondem cisma extremamente patológicas, psicologia doentia”, et cœtera e tal. Antônio Houaiss, também, nos lembra que, “em conseqüência dos usos simbólicos feitos por Augusto dos Anjos, de um material não raro de procedência científica, dos usos analógicos e corretos para fins de enlace estético e emocional, desde sempre se manifestou entre nós de interpretar a poesia de Augusto dos Anjos como uma poesia exótica, cuja chave – como a de Cruz e Souza – poderia estar na sistemática de certas doutrinas orientais místicas”... Já pensou?!

Mas muito longe de ser um poeta conhecido e aclamado, como Augusto dos Anjos o é, Aloísio Resende (1900-1941) não está livre de interpretações semelhantes; e, mesmo a sua exígua produção literária, torna-se vítima de uma “visão multicultural” que leva muito mais em conta os processos pessoais do autor como se esses valessem muito mais do que a sua produção poética ou como se estes fossem a poesia em si, não levando nem mesmo em consideração aquela máxima de Fernando Pessoa de que “o poeta é um fingidor”; máxima, aliás, que vale muito mais do que toda a obra de Raymond Williams.

Nascido na provinciana Feira de Santana, no início do século passado, Aloísio Resende era negro, pobre e, supostamente, um beberrão freqüentador de candomblés e de quengueiros; seguindo os caminhos da figura mística vitimada pela condição social, pela cor e pela escolha religiosa que escrevia versos como quem desabafa suas mágoas, em glorioso e talentoso protesto, tornou-se um prato cheio para todos os oportunistas dos Estudos Culturais de plantão, que o vêem como uma figura lendária destituída de seu cânone, mas sem olhar necessariamente (nem verdadeiramente) como poeta que era... para variar.

Continue a leitura em: http://poetasilverioduque.blogspot.com/2011/05/da-olaria-ourivesaria-aloisio-resende-o.html

Ildásio Tavares (1940-2010)

Morreu, hoje, às 17h, deste triste 31 de outubro de 2010, aos 70 anos, o poeta, compositor, tradutor, mestre e, acima de tudo, amigo, Ildásio Tavares. Internado no Hospital Jorge Valente, em Salvador, desde o dia 27 deste mês, Ildásio sofreu um Acidente Vascular Cerebral que ceifou a sua vida de poeta.

Segundo nota de Assis Brasil, em A poesia baiana do século XX, pertence à geração Revista da Bahia, juntamente com Cyro de Mattos, Fernando Batinga de Mendonça, Marcos Santarrita, Alberto Silva. Estes, e mais José Carlos Capinam, Ruy Espinheira Filho, Adelmo Oliveira, José de Oliveira Falcón, Carlos Falck, Maria da Conceição Paranhos entre outros "formam um panorama fecundo e variado" a partir da década de 60.

Possui vários livros publicados, como Imago, Ditado, O canto do homem cotidiano, Tapete do tempo, Poemas seletos, Livro de salmos, IX Sonetos da Inconfidência, Lídia de Oxum, O amor é um pássaro selvagem, O domador de mulheres, A arte de traduzir... entre outros. É ganhador, entre tantos prêmios, do Leonard Ross Klein, de tradução; do Afrânio Peixoto, de ensaio; do Fernando Chinaglia, de poesia; e do prêmio nacional do centenário de Jorge de Lima. É bacharel em Direito e licenciado em Letras pela Universidade Federal da Bahia; mestre pela Southem Illinois University; doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pós-doutor pela Universidade de Lisboa.

Seu trabalho como jornalista compreende participação em vários periódicos, entre os quais, Diário de Notícias, Jornal da Cidade, A Tarde e Tribuna da Bahia. Membro praticante do candomblé, foi consagrado Ogan Omi L’arê, na casa de Oxum, e Obá Arê, na casa de Xangô e no Axé Opô Afonjá. É cidadão da cidade de Salvador desde 1986.

É muito difícil, para mim, falar de tamanha perda; assim como à toda grande Literatura Brasileira. Ildásio Tavares é da mesma linha de um Bruno Tolentino ou um Ferreira Gullar. Sua vida e sua obra se cercaram de uma busca incansável pela qualidade poética e pela defesa da mais pura tradição de nossas Letras. Homem formidável, polêmico, de rara cultura e inegável talento, sempre foi solícito aos novos aspirantes e jamais lhes negou o seu papel de professor, como aconteceu a este humilde poeta, pois foi Ildásio quem prefaciou, com sabedoria e elegância, o meu último livro. Agora, como muitos, este humilde poeta, como muito, chora a sua morte.

Como me faltam as palavras “mais burocráticas” neste momento, talvez a melhor maneira para me despedir de um poeta seja com poesia; por isso, deixo, aqui, um soneto que fiz com base em um de seus poemas e que eu, muito agradecido lhe dediquei, fazendo deste a minha maneira mais sincera e particular de lhe dizer: obrigado, Mestre e até breve, meu Amigo!

[OFÉLIA]
ao mestre, amigo e poeta Ildásio Tavares... este bastardo

Meu coração é um cabedal de sonho
de dores que antecedem cada instante
e a noite há de chegar, assim suponho
como a pisada brusca de um gigante.

De ausência e de desejo, em vão, componho
uma canção cafona e dissonante
e, ao ver tal despautério, então suponho:
sou talentosa como um elefante!

Ah, andai meus pés, andai que o rio espera
nossas cruéis lembranças, nossos corpos...
pois quem jamais amou melhor viveu.

Se eu vejo outro nascer? A Nova Era...?!
Eu vejo o que eu vivi; vejo os meus mortos;
quem dá valor a vida é quem morreu.

Cangaceiro de Ademir Martins - Óleo sobre tela - . 100 x 81 cm. 1967.


PEQUENO CANTAR ACADÊMICO
A MODO DE REPENTE
ao escritor Raimundo Gomes... uma réplica

Caríssimo Raimundo Gomes,
não, o meu verso não é prece
como a todos, em vão, parece.
Sou de lugares sem seus nomes

e deles trago as minhas mortes -
todo amor que, por si, se esquece.
Do drama que me arrefece...?
dele é que eu tiro minhas sortes.

Meu verso é verso de galope:
de trote largo e olhar profundo,
com a dor e as voltas deste mundo.

Meu verso é verso de um só mote
e é verso assim, tão combalido...
mas bem dosado e bem medido.

Viagem, técnica mista sobre papelão paraná (80 x 100 cm), 2005.


Balada para Enone, técnica mista sobre papelão paraná (80 x 100 cm), 2005.


Aportes da serra de Tanquinho, técnica mista sobre papelão paraná (80 x 100 cm), 2005.


A eterna imanência, técnica mista sobre papelão paraná (80 x 100 cm), 2005.


Balada para Cecília, técnica mista sobre papelão paraná (80 x 100 cm), 2005.


Balada para Hilda, técnica mista sobre papelão paraná (80 x 100 cm), 2005.

Já tive a oportunidade - aliás, várias - de falar do trabalho artístico de Gabriel Ferreira, mas não disse o quanto me enche de orgulho o facto de eu, ou melhor, meu trabalho de poeta, servir como uma rica fonte de inspiração para o trabalho deste artista excepcional... Há alguns dias, em seu Blogger, Gabriel Ferreira deu testemunho desta inspiração, através da publicação de alguns trabalhos baseados em meu primeiro livro. Todo primeiro livro é "o primeiro livro": ingênuo, às vezes, cheio de melhoras a se fazer, carregado com "as pernas dos outros"... mas se serve de inspiração para um trabalho tão bom, este poeta esteja exigindo demais de si...?! Bem!, segue, na íntegra, as palavras de Gabriel... acima, os trabalhos inpirados em alguns poemas do livro e, claro, o link para o Blogger de Gabriel Ferreira:

"Mesmo após 5 anos do seu lançamento e o autor ter publicado um novo livro em 2010, Baladas e Outros Aportes de Viagem, do poeta e amigo, Silvério Duque continua fazendo sucesso. O referido livro é a segunda obra literária do autor e o primeiro que eu tive a satisfação de ilustrar a capa. As ilustrações que se seguem são inspiradas em poemas daquele livro, as quais participaram dos seus lançamentos. São trabalhos de muita responsabilidade, pois, para além da exigência do Duque (o qual é o principal crítico da minha obra), eles marcam uma ascendência salutar em minha vida de artista, pois foram bastante apreciados pelo artista plástico Pirulito e pelo saudoso poeta Damário Dacruz na ocasião do 1º lançamento no Museu de Arte Contemporânea-MAC em Feira de Santana-BA, 2005. Escutei elogios dessas duas grandes personalidades do Recôncavo Baiano e, deveras, senti-me um pouco mais artista. Baladas e Outros Aportes de Viagem é um livro bastante inspirador, pois, traz experiências interessantes do Duque em suas andanças como professor, "menino tanquinhense" e amor de uma mulher. Faço esse retrospécto para que muitas outras pessoas venham a conhecer as coisas boas da literatura que me servem de mote para pintar. Conhecer de perto a dedicação do "Capitão do Mato" Silvério Duque e sua doação à poesia é penetrar em seu universo de versos decassílabos e sonetos verdadeiros; cada linha que ele desenha é um recital aprazível. Acima estão as fotografias das obras que releem e tentam refazer visualmente a poesia que existe em lugar importante na história".

GABRIEL FERREIRA
http://artistagabrielferreira.blogspot.com

Postado por Poeta Silvério Duque no POETA SILVÉRIO DUQUE em 7/10/2010 01:01:00 PM

O LIVRO DE SCARDANELLI: O ESQUADRO DA LOUCURA
por Jessé de Almeida Primo

Começarei com um clichê imprescindível como a maioria dos clichês: O livro de Scardanelli (É Realizações, 2008), de Érico Nogueira, não é uma obra comum. A discussão conteudístico-formal que subjaz a essa obra não parece, à primeira vista, familiar à nossa paisagem mental, muito menos à lírica, ainda que tenha contato, como se verá, com um poema de muito sucesso no Brasil.
De tal modo essa estranheza se manifesta que algum desavisado poderia pensar que o livro é de autoria de algum estrangeiro exilado nos trópicos, aborrecido com o sol infernal e que, saudoso de sua terra, escreve diante de um freezer aberto e com o ar condicionado ligado no máximo. Sim, a obra em questão tem algo de gélido, mesmo quando fala de verão e primavera; assim como nela tudo é noite, mesmo que brilhe o sol. Dessa assimetria falarei mais adiante.

Seria, por acaso, uma tradução? Suspeitá-lo-ia o leitor que já tenha passado pelo ciclo de Scardanelli de Hoelderlin ou simplesmente aquele que leu o posfácio do autor, em que ele explica que se limitou a emular tão-somente “o metro, o ritmo e as rimas dos originais”. Isso, sim, que é originalidade. O resto é conversa.

Não se trata de um mero paradoxo. Segundo escreve Carlos Felipe Moisés no belo ensaio “Para quê poetas?”, que acompanha O livro de Scardanelli, a verdadeira identidade do poeta alemão, numa rara demonstração de loucura, é enterrada sob este curioso pseudônimo à italiana. Já na emulação feita por Érico Nogueira, mais uma vez com Felipe Moisés, há uma tentativa de recuperação dessa identidade.

Nessa emulação, o autor resgata a tradição da imitação que praticamente se findou com o apego desesperado aos direitos autorais, o que certamente tenha coincidido com o advento da indústria do livro. Talvez Manuel Bandeira seja uma exceção se levarmos em conta os seus “À maneira de”. Fora isso, temos as famosas imitações de Homero por Virgílio, as de Petrarca por Camões, as de Camões por Góngora, as de Quevedo por Gregório de Matos, ou seja: entre os melhores estavam aqueles que melhor imitavam. Imitação essa que estava muito longe daquela empreendida por um escritor inventado por Borges, cujo “Don Quijote” reproduzia exatamente o texto de Cervantes, mas teve sua originalidade garantida por tê-lo escrito no século XX. A imitação de que aqui se fala é antes de tudo intimidade com a arquitetura dos poemas originais, é procurar realizar determinada forma tão bem quanto aquela que inspira essa imitação. Quanto às motivações da emulação aqui estudada, veremos mais adiante.

Horácio esteve aqui

"Se as cores se fundiram em verde-musgo," (Hora Média, Livro de Horas)

"As folhas já se foram há certo tempo,
há certo frio rochoso nas escarpas," (Vésperas, Livro de Horas)

"(...) O tédio
me faz seguir a tortuosa rota
da mesma água para foz ignota
em vez de atravessar um vau inédito
que acaba onde se quer. Mereço crédito?" (Soneto 5, Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama)

"A terra limpa e arada,
o vento encurvando as oliveiras," (Dois hálitos, Cadernos de Exercícios)

Os versos acima são alguns dos belos exemplos d’O livro de Scardanelli, constituído por 72 poemas que se distribuem em três partes: “Livro de horas”, 23 poemas compostos segundo a pauta determinada pelos que formam o ciclo Scardanelli, de Hoelderlin; “Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama”, uma seqüência de 24 sonetos em que uma linguagem, digamos, mais contemporânea - sem contar os registros lingüísticos mais clássicos também -, encontra maior adequação numa forma muito característica da tradição inglesa, que é justamente o soneto inglês; e, por fim, as formas mais variadas (do soneto, passando por formas em que mais predomina a quantidade da poesia greco-latina que o metro silábico do português, até a oitava camoniana) dão o tom de “Cadernos de Exercícios”, justificando dessa forma o seu nome. Mas os exemplos supracitados não foram escolhidos pela sua beleza, e sim por força de um aspecto que une as três partes de que esta obra é constituída: sua limpidez geométrica. Como se vê também pelo colorido bucólico de muitas dessas composições, estamos diante de uma obra neoclássica concebida em pleno século XXI.

A opção por uma referência pretérita, por sua vez, fundamentada em outra ainda mais remota, que é a poesia greco-latina clássica, não se explica pela vaidade erudita, “there is a method on it”. A escolha neoclassicista é antes de tudo tática, pois é uma forma de expressão, digamos, tão geométrica quanto a loucura. (Antes de prosseguir, não quero dar a entender que os renascentistas e os neoclássicos eram loucos, mas com certeza os loucos são renascentistas ou neoclássicos...)

Não estranhe o leitor essa consideração, pois nada tão organizado quanto a mente de um louco, que odeia as coisas fora de lugar; mais ainda, a assimetria perturba-o à exasperação. A loucura não é simplesmente uma desordem mental ou uma forma de desarticulação espiritual. É a pretensão de impor uma ordem ou uma forma justamente onde estas não se manifestam, pelo menos não do modo esperado. É o desejo de que tudo se encaixe, de que tudo se explique, enfim, é um desejo tão solar quanto desesperado de simetria. Quando, porém, a realidade se revela “desajustada”, nada resta senão criar um mundo harmônico, dotado de uma perfeição geométrica, onde tudo funcione, ou, quiçá, idealizar uma época em que tudo era bom, em que os campos eram mais verdejantes, quando o homem e a natureza davam-se as mãos. Esse aspecto da loucura como sede de simetria é a grande sacada de O livro de Scardanelli, de Érico Nogueira, em que um verdadeiro inferno espiritual habita formas harmoniosas e versos tão límpidos quanto os rios à beira dos quais descansam cabras e pastores.

Se a tranqüilidade dos pastores romanos parecia genuína, a dos renascentistas parece calculada, e esse cálculo parece atingir seu ápice na produção dos poetas neoclássicos, de modo que os pastores e suas cabras, a despeito da qualidade de sua poesia, mais lembram criaturas saídas de uma incubadora que de uma natureza suja, hostil e fugidia. Como não se lembrar de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga? Marília, assim como Sandra Gama, da segunda parte do livro de Érico Nogueira, dá a impressão de ser algo próximo de uma sombra mental, como nos ilustra o autor no seu 22º soneto, quebrando assim, como nos lembra Felipe Moisés, a expectativa sensualista do leitor. E como não se lembrar de O mundo como idéia, de Bruno Tolentino, a quem, não por acaso, o livro é dedicado? O que é essa geometria obsessiva senão o inferno que Tolentino tão bem traduziu na imagem de “um puro palácio aritmético”?

Curiosamente, o "Cancioneiro Inglês", pouco importa se deliberadamente ou não, e a despeito de seu aspecto farsesco, é o Marília de Dirceu de nossa época: tanto em um como em outro há um sujeito que, num processo de interiorização, - e entre várias elucubrações - rumina o nome de uma mulher cuja existência parece mais criação de uma mente solitária que um fato concreto. Acontece que no "Cancioneiro Inglês", principalmente a partir do 18º soneto, a confusão se estabelece e a loucura parece atingir o paroxismo: ora a existência de Sandra Gama é carnalizada e a presença do amante se abstratiza, ora é a presença dela que se anula e o amante recupera a sua, ora ambos somem de uma vez:

"Por isso não conheço com quem lido:
pois de mim mesmo sou desconhecido." (soneto 19)

Fernando Pessoa compreendeu tão bem (para não dizer dolorosamente) o fenômeno do desespero geométrico que se poderia dizer que seu heterônimo mais angustiado é Ricardo Reis, precisamente um poeta horaciano neoclássico. Se a expectativa da morte ou de uma constrangedora decepção e a certeza da contingência se interpõem entre ele e sua Lídia (“desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos”), a destemida voz que procura atingir os sentidos de Frederico ou a que predomina no "Caderno de Exercícios" manda esse pudor às favas:

"Quando passou, então, por essas frutas,
a água não molhou – ficaram, pois, enxutas,
sem que um teu dente ao menos as marcasse;
aonde a água ia que o justificasse?" (Hora Média)

"pensar e não comer, que idéia louca." (As pêras de Diana)

Ou seja, o que poderíamos chamar de convenção de escola acabou servindo ao propósito de, a um só tempo, garantir-lhe a permanência e discutir, com seus próprios termos, o que subjaz a essa convenção.

Essa assimetria, sombriamente introduzida com o verso “A hora lúcida de cara dupla”, do poema "Visão", o primeiro do livro, é o que também percebemos em todo "Livro de horas", onde se conta a história de dois seres condenados a não se encontrarem, daí que a voz dirigida a Frederico só seja ouvida pelo leitor. Ela nunca chega ao que deveria ser o principal interessado. Curiosamente, a “cara dupla” da referida “hora lúcida”, que é o leitmotiv da obra, tem algo de “a pair of star-cross’d”, que é o leitmotiv de Romeu e Julieta presente no soneto que serve de prólogo à peça – aliás, um casal presa de uma paixão às escuras por conta da inimizade entre suas famílias e cujo amor, numa trágica manifestação de assimetria que parece se opor à realização de um desejo, fora comprometido pela artimanha por meio da qual esperavam consumar esse amor de maneira plena.

A “cara dupla”, a assimetria, a falta de convergência entre objetivos, mais ainda, a presença de objetivo em um e a falta total de objetivo em outro explicam uma evolução notada na voz que fala, mas não naquele a quem ela se dirige. Além disso, a natureza toda parece brincar em torno de uma figura tão paralisada quanto a que se apresenta em um quadro de natureza morta:

"Um lume chega – ou vem do alto, ou vem de baixo,
a treva, devagar, expele um novo dia;
sorriem bocas, mas num outro pasto,
que neste não há boca que sorria." (Dilúculo)

Afinal, o que esperar de alguém cuja mente é um universo paralelo com o qual não se consegue estabelecer um contato genuíno? É o que parece acontecer também na Balada do cárcere, do já citado Bruno Tolentino, onde uma voz fala de um encarcerado conhecido como Numeropata (“Era o 212/voltava a cara ou as costas/ se alguém o chamava Ambrose”) ou a ele se dirige (“Dorme, Minotauro, mouro/ da mais amarga Veneza...”). Por outro lado, apesar de em ambas as obras haver uma tentativa de resgate de uma identidade perdida no imenso palácio da loucura, há um abismo que as separa: numa, há uma voz luciferina-epicurista que procura – pela apropriação da estrutura poética alheia que é a do próprio Hoelderlin, e assim penetrando no seu delírio - despertar uma consciência recolhida com uma solução, como diria o apóstolo Paulo, “segundo a carne” (“por isso goza, Frederico, a parte/ que do todo puder a tua arte.”); noutra, uma voz que procura aproximar o encarcerado da revelação, ainda que seja por caminhos tortuosos e surpreendentes (“É cavalgando a besta/ que a alma depara o criador”). Esse tortuoso caminho que conduz à revelação também está presente em As horas de Katharina, do mesmo Bruno Tolentino: “Porque se fácil fora abandoná-lo,/que difícil o ofício de voltar!/Com que dedicação há que escalar,/ para habitá-lo, os graus desse castelo.”

O que estas obras têm em comum com O livro de Scardanelli é a clausura: a prisão propriamente dita n’ A balada do Cárcere e a cela de um convento, n’As horas de Katharina. Há, porém mais do que isso para irmaná-las: no caso da Balada, Ambrose é também presa da loucura que se configura, por sua vez, na sede de simetria, a tal ponto que só atendia àqueles que o chamavam pelo número, “passara a ser algarismos”. Katharina, mais afortunada, já que podia contar com a lucidez, por outro lado parecia não perceber que Aquele por Quem tanto procurava e por Quem se sentia abandonada estava ao seu lado o tempo inteiro: “Fechei os olhos então,/fiz como ela [a andorinha] e fui eu,/eu mesma minha prisão.” Em ambas há a presença de quem está de fora e procura despertar aquele que se encontra recluso: Ambrose pode contar com a generosidade de seu colega de prisão, ainda que esta não seja percebida, e Katharina com o próprio Deus que lhe apresenta sinais o tempo inteiro. Porém, enquanto nessas obras as atormentadas personagens podem contar com um Virgílio, por sua vez sob os auspícios de uma Beatriz, para guiá-las pelo inferno até chegar ao Paraíso, Frederico é constantemente abordado por uma voz que procura apontar um caminho inverso: “daquela funda treva não se sabe/ como voltar, a altura não se anela” (Glosa de Mote Alheio).

A comparação acima levanta as seguintes interrogações: seria O livro de Scardanelli um antípoda da obra de Bruno Tolentino? Seria, por isso, uma reação luciferina contra o esforço de resistir ao “mundo como idéia”? De certa forma, pode-se afirmar que sim. A diferença moral entre as duas vozes é mais que evidente, e elas repetem num outro plano a famosa tentação no deserto de que falam os Evangelhos. Por outro lado, não seria imprudente afirmar o imoralismo da primeira face ao objetivismo moral da segunda? Por que, antes, não observar que o objetivismo moral de uma não ressalta, numa comparação como a empreendida no parágrafo anterior, o evidente imoralismo da outra? Lembremo-nos, afinal, de que a voz que se dirige ao pobre Ambrose, a qual ocupa a primeira e a terceira partes d’A balada do cárcere, é uma voz, dir-se-ia, direta, facilmente identificada com a voz do próprio Tolentino, em nada distante de sua particular visão de mundo, ainda que não abra mão, é claro, da ficção literária; ao passo que n’O livro de Scardanelli Érico Nogueira abdica de sua própria voz com o fito de abrir espaço para a voz de um esteta donjuanesco, tendo concebido, assim, uma personagem bastante convincente, o que (e encerrando aqui a comparação entre os dois poetas) na Balada só acontece na segunda parte, em que o autor se ausenta para deixar falar o Numeropata.

Essa tensão de ser e não ser, do existir e não existir e, enfim, de desencontros tão reais quanto alucinantes, é levada às últimas conseqüências no "Cancioneiro Inglês", como já vimos. O curioso é que Frederico, assim como Sandra Gama, é uma personagem da qual não conseguimos visualizar um rosto ou um gesto, mas com cuja ausência nos esbarramos sempre. É alguém que parece não termos visto mais gordo e, como diria a voz presente no "Cancioneiro", “que, por isso, me entalou na porta.”

Essa tensão adquire um contorno ainda mais doloroso no décimo terceiro soneto, o qual reproduzo na íntegra:

"A morta que deflagro, a mesma estátua
semi-sorrindo a um mesmo cemitério,
indiferente e fria como a prata,
ensangüentada e morta com o ferro,
ouvi-a, quando o vento estava quieto,
falar na concha, que tem voz de nácar:
'Ó marinheiro, que no sal asséptico
mergulhas e afias tua faca,
era mancha de sangue que polias,
era ferro manchado que salgavas,
que me deixou com as feições tão frias
de ensangüentada prata, sem ressalvas?'
Entre o poema e ela, eu o escolhi;
ganhei um tema, porque o mais perdi."

Deparamo-nos aqui com um drama que se elabora em bem construídas – e por isso mesmo naturais - rimas toantes (estátua/prata, cemitério/ferro; nácar/faca, quieto/asséptico) e numa impressionante plasticidade que muito bem diz da feição pétrea que se confirma numa condenatória permanência em certo lugar: “A morta que deflagro, a mesma estátua/ semi-sorrindo a um mesmo cemitério”; ou que reproduz a voz de quem, qual num pesadelo eterno, ou não se consegue fazer ouvir, ou, quando isso ocorre, soa como se vinda das profundezas: “ouvi-a, quando o vento estava quieto,/ falar na concha, que tem voz de nácar”.

Esse poema dramático, mais precisamente os dísticos que o encerram, remete a uma história segundo a qual Camões, em meio a um naufrágio, teria preferido levar Os Lusíadas a nado em detrimento de sua amante indiana que se afogava, compondo depois em sua homenagem o famoso: “Alma minha gentil que te partiste/ tão cedo desta vida descontente”. Pouco se sabe da veracidade do ocorrido, mas factual ou não, não se lhe pode negar o caráter exemplar: se nos outros sonetos que compõem a série do “Cancioneiro Inglês” a musa pode ser um mero delírio, no presente caso há um “agravamento moral” na medida em que o outro é visto como um possível obstáculo à realização artística, tendo por isso que ser ou eliminado ou reduzido a um modelo, ou senão as duas coisas ao mesmo tempo: “Entre o poema e ela, eu o escolhi;/ganhei um tema, porque o mais perdi.”

O aspecto mais assustador disso tudo é que não ocorre a romântica “salvação pela arte”, mas tão-somente “a salvação da arte”, a se traduzir no sonho de se construir uma cidade para habitá-la de estátuas em vez de gente (“apenas, entre alguém e seu retrato,/para meu dano, preteri alguém.” Soneto 16); um imenso museu, em que a perfeição geométrica manifesta nos mármores minuciosamente cinzelados não seja perturbada pela imprevisibilidade dos movimentos ou pela velhice ou pela morte que não pode existir porque a vida é algo ausente.

Encerrando nossa incursão no interior dessa grande criação literária como que saída de uma mente enferma, qual o papel do "Caderno de exercícios" nessa metódica loucura? De que modo essa terceira parte com ar de “outros poemas” participa dessa unidade? Carlos Felipe Moisés vem a nosso socorro dizendo que o Caderno de exercícios é “a matriz de onde tudo proveio”. A essa observação acrescentaria algo: “exercício” é, entre outras coisas, – e a julgar pela notável variedade formal – a busca incessante de um método. Logo, esse caderno é o método de que vai se servir essa loucura.

Postado por Poeta Silvério Duque no POETA SILVÉRIO DUQUE em 7/09/2010 04:02:00 PM.

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O Beijo (que é baseado na trágica história de amor entre Paolo e Francesca
, na Divina Comédia, de Dante) 1900, por Auguste Rodin


E o que eu adoro em ti é a tua carne,
porque tudo o que é vivo se deseja;
assim, desejo em ti o meu tormento
que há-de crescer na proporção do tempo.
O que eu almejo em ti é a tua sombra,
pois toda boca habita as mesmas vozes
que hão-de tecer com gritos o teu nome
na tarde azul tragada pela noite.
Beijo o teu rosto como se existisse
algum lugar pr’além do Precipício,
e, junto ao gosto de teu lábio esquivo,
uma palavra, sobrescrita em sangue,
há-de adornar o verso em que eu me esqueço
e há-de extirpar, do amor, a fúria imensa.

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Venda de escravos em Roma de Jean-Léon Gérôme


Nu sentado de Giovanni Boldini

aos amigos e poetas, Antônio Brasileiro, Bernardo Linhares e Patrice de Moraes.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavrae seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A forma, caro leitor, sempre pareceu, aos olhos ineptos, como um grande problema para quem nutria alguma pretensão poética; durante a pantomima estilística promovida pelo modernismo paulista de 1922, a forma figurará com um problema a ser resolvido, ou melhor, um cancro a ser extirpado, e não uma condição natural do fazer poético.

Ambas as concepções são impressões simplórias e vulgares de quem só gosta de acreditar em besteira; neste caso, na idéia de que a forma é uma mera disposição de versos e rimas, ao bem da escolha de cada poeta, principalmente, àqueles que demonstram a mais completa inabilidade para com ela. Digo isso por pura experiência, pois, de todos os poetas que convivo e convivi – dos que conheço pessoalmente ou dos que só sei de ouvir falar e ler –, somente os que não dominam a forma reclamam dela; análogos a muitos artistas plásticos de lorota, que escondem sua escassez de talento através de um dito viés abstracionista. Há muitos que se dizem poetas, desprezando o soneto e as demais formas fixas, com a velha desculpa de que a forma é uma “aprisionadora” da inspiração e, conseqüentemente, do poema... entre outros despautérios. A estes, vale o conselho de um velho romântico inglês, que, aliás, intitula este artigo.

A forma, no entanto, nada mais é do que a elaboração interior do poema e é a idéia nele contida que a comporá, não o contrário. Um decassílabo, por exemplo, deve nascer decassílabo, quaisquer emendas de rimas ou sílabas métricas resultariam numa deformidade a comprometer, mais do que a qualquer outra coisa, o conteúdo da poesia. Forma é assimilação de idéia; compor diretamente nela é o melhor exemplo que alguém possa ter da incorporação desta idéia ao seu resultado final, enquanto arte. Todavia, é sempre bom lembrar que, quando digo que não pode haver emendas, ou apoios à composição de um poema, não me refiro aqui à depuração, que é um ato indispensável à criação poética, e que nada mais é do que o exercício e, conseqüentemente, a adequação de melhores recursos a uma forma já existente, pois ninguém sai de um soneto alexandrino para uma retranca, ou de um octossílabo pronto para um possível decassílabo sáfico; apenas se lapida, se retoca, fazendo com que um verso defeituoso, ou inexpressivo, como bem considerou Manuel Bandeira, em seu Itinerário de Passargada, carregue-se de poesia “pelo efeito encantatório de uma ou de algumas palavras”, exprimindo, no entanto, a mesma idéia e o mesmo sentimento que as substituídas, mas “lhes dando superioridade” naquilo que é a matéria mesma da poesia: a palavra. O exemplo de Bandeira foi com Castro Alves, em um dístico de seu célebre Mocidade e Morte:


Mas uma voz repete-me sombria:
terás abrigo sobre a lágea fria.

mudado, então, para

Mas uma voz responde-me sombria:
terás teu sono sobre a lágea fria.

Evidentemente, muito melhor; segundo o próprio Manuel Bandeira, pelo desaparecimento do eco de “fria” do i de “abrigo”, e, ainda segundo o autor de Itinerário de Passargada, porque “sono” evoca muito mais a idéia de “morte”. Melhor nem mais didático exemplo para diferenciar emenda de depuração existe ou não o encontrei.

A forma não trabalha em causa própria, ela realiza a idéia presente no poema, apropriando-a à rima, à métrica e ao ritmo, como afirmara, certa vez, T.S. Eliot. Pensar que um soneto são simplórios catorze versos, distribuídos entre estrofes e um sistema de ritmos e rimas é puro e irresponsável desmerecimento. Antes, caro leitor, devemos olhar para um soneto muito mais por seu caráter dissertativo, racional e objetivo; caráter, aliás, presente em toda as artes, ao menos, é claro, que alguém acredite que a arte não é uma concepção exclusiva da humanidade. Desta maneira, fica fácil perceber o quanto que a forma é muito mais a realização de um conteúdo apropriado à rima ou ao ritmo do que o contrário; percebe-se, assim, que, para Camões, por exemplo, a forma, mais do que uma imposição estilística de sua época, é a única maneira pela qual sua poesia poderia se realizar, ao contrário da dos Românticos que, tomados de um sentimentalismo desenfreado e, muitas vezes urgente, pouco se utilizaram do soneto, porque seus emotivos frenéticos e alucinados não poderiam resultar em algo que advém, justamente, do racional e do amadurecimento paciente. Isso, porém, não impede que ninguém faça um soneto; já a qualidade deste soneto...

É bom lembrar, também, que a forma não estabelece o conteúdo de um poema, muito pelo contrário; a forma é o resultado mais imediato deste conteúdo e nada denuncia mais o vazio, ou a hipocrisia, de um poeta – intelectualmente falando – do que seu metro, do que sua forma. A sinceridade do teor de um poema mede-se, muito mais, pela sua disposição formal do que pela análise crítica de qualquer um que seja. Mesmo desprovido de rimas, ou não se dispondo no famoso formato de dois quartetos e de dois tercetos, obedecendo a uma elaboraçã obedecendo-se a uma elaboraçto de dois quartetos e de dois tercetoste, pouco se utilizaram do soneto, porque seus emotivos poo interior. Desta maneira, Jessé de Almeida Primo, em seu livro A natureza da Poesia, afirma que “um soneto será sempre um soneto ainda que os versos estejam distribuídos na forma prosaica ou dispostos numa forma fixa completamente alheia, uma vez haver tratamento específico da métrica além de uma distribuição de rimas as quais determinam o modo como os versos devem se agrupar”, não sendo à toa, segundo o próprio Jessé, que ouvidos treinados identificam a forma fixa pela própria elocução. Mesmos os versos ditos “livres” compensam sua falta de regularidade métrica e estrófica por meio de uma progressiva simetria rítmica, pois nenhum verso é livre para quem realiza um bom trabalho, segundo, novamente, o velho T.S. Eliot. Em suma, verso livre, ou metrificado são, em natureza e maneira de composição, a mesma coisa.

Para que as coisas que eu digo não soem a ninguém como uma alegoria simplória – o que não seria de todo ruim, pois o que é uma alegoria senão “a substituição do abstrato pelo aparentemente concreto”, como bem definiu Coleridge? –, vou buscar um exemplo tão sólido quanto perigoso: Dante Alighieri.

A relação poesia-prosa nunca foi um problema para Dante, ele soube, como nenhum outro poeta, quais as diferenças entre um problema de estrutura e um problema de natureza. Assim sendo, Dante nunca foi temeroso ao locupletar sua poesia com conteúdos de natureza filosófica, como ornar, com elementos puramente poéticos, uma prosa qualquer, e, por isso mesmo, nada foi a mais do que um poeta – mas, durante séculos, um poeta como nenhum outro. Da mesma maneira, a forma, para Dante Alighieri, sempre refletiu o serviço, por assim dizer, que uma obra de compromisso, ao mesmo tempo, poético e didático, como a Divina Comédia, procurou prestar em prol da poesia. O melhor exemplo disto tudo, segundo César Leal, em Os cavaleiros de Júpiter, é a importância que o número exerce em sua obra, até porque, toda Divina Comédia é concebida numa estrutura numerológica, criando uma organização destinada, puramente, a sustentar a enorme cadeia de símbolos de seu tão famoso poema, como se pode ver em:

E quando l'arco de l'ardente affetto
fu sì sfogato, che 'l parlar discese
inver' lo segno del nostro intelletto,


la prima cosa che per me s'intese,
“Benedetto sia tu”, fu, “trino e uno,
che nel mio seme se' tanto cortese!”.

E seguì: “Grato e lontano digiuno,
tratto leggendo del magno volume
du' non si muta mai bianco né bruno,

solvuto hai, figlio, dentro a questo lume
in ch'io ti parlo, mercè di colei
ch'a l'alto volo ti vestì le piume.

Tu credi che a me tuo pensier mei
da quel ch'è primo, così come raia
da l'un, se si conosce, il cinque e 'l sei;


e però ch'io mi sia e perch' io paia
più gaudïoso a te, non mi domandi,
che alcun altro in questa turba gaia”.
(...)


Para César Leal, o número 9, por exemplo, quase sempre significa um “milagre”, por ser múltiplo de 3, a Trindade, que, em Dante, sempre será, o número 3, uma imagem cinética. O número 9 é a Sabedoria Moral e Metafísica, representada por Virgílio, que é o resultado da soma de 6+3, referente aos 63 cantos em que Virgílio acompanha Dante no Inferno; depois, restam 37 cantos, relativos à intervenção de Beatriz; 3+7 é 10, símbolo da Suprema Sabedoria. Cada cântico se divide em 33 cantos, tempo em que Cristo, como homem, viveu entre nós, que, somados entre si, chega-se a 99 que, associado ao Introdutório é igual a 100, chegando-se a máxima Perfeição. O resultado formal mais imediato de tudo isso, caro leitor, é a terza-rima, correspondendo diretamente ao conteúdo da Divina Comédia.

Outro exemplo, digamos, menos “clássico”, mais de sólida representação para o que afirmo sobre a forma, enquanto realização da obediência ao conteúdo poético, caro leitor, encontra-se em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.

Num poema ambientado e, de certo modo, empenhado em discorrer sobre o Sertão Nordestino, mais necessariamente a respeito da seca que, ciclicamente, assola toda aquela região, mas, também, sobre o desprezo das autoridades em relação a este fenômeno climático, criando, por sua vez, um verdadeiro cataclismo econômico, produto da exploração de um e da extrema ignorância de outros, além de falar sobre um retirante esperançoso, resultado direto do descaso, ignorância e desespero, e de sua caminhada pelo sertão pernambucano, tão calcinado, numa espécie de epopéia às avessas, carregada de um fortíssimo apelo político-social, onde a Viagem, maior e mais antigo tema da história humana, ganha um aspecto profundamente trágico, encarnando um herói picaresco atípico, à maneira de um anti-Odisseu sertanejo diante da caatinga – revés do mar – e do desinteresse político – revés dos deuses –, a se aliar aos vários aspectos religiosos e folclóricos, que se amalgamam sobre certo aspecto medievo, formando um típico e grandioso poema brasileiro, que não poderia ter outro resultado formal senão uma narrativa de ritmo gilvicenteano, diretamente associada ao cordel, com a diferença de que seu narrador deixa de ser um mero contador de estórias para protagonizar, na carne e no espírito, todo o sofrimento em que consiste esta caminhada, onde o uso da medida velha espelha todos esses aspectos e incide, diretamente, sem seu teor dramático. Leiamos:

Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de Vida Severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais Severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
(...)


Examinando atentamente os dois exemplos anteriores, torna-se impossível desconsiderar a forma como a obediente adequação de um ritmo apreendido e a um conteúdo, de igual maneira, internalizado. Esta, outrossim, vale para qualquer gênero, caro leitor, pois o que é um conto, ou mesmo um romance, a não ser uma forma resultante de um conteúdo racionalizado, que, por sua vez, alia-se a um conteúdo adequado? Uma novela é para a prosa algo tão formal quanto um soneto para a poesia, até porque, ambas, são dotadas da mesma natureza. Para Jessé de Almeida Primo, em A natureza da Poesia, a diferença reside apenas na disposição rítmica e prosódica de cada uma delas. Já Olavo de Carvalho, também lembrado por Jessé, estabelece essa diferença tanto pela elocução quanto pela quantidade, em seu livro Gêneros literários e seus fundamentos metafísicos. Para Olavo, a diferença entre poesia e prosa reside na continuidade de uma – a poesia – e na descontinuidade da outra – a prosa. Se o texto traz algo de seccionamento, seja este rítmico ou métrico, eis o verso, eis a poesia; se contrário, se vai e não volta, se nele existe algo que não se reitera, que não retorna, temos, então, segundo Olavo de Carvalho, a prosa. Não há diferença de significação entre prosa e verso o que há, e o filósofo deixa isso bem claro, é uma diferença no modo de elocução. Para isso mesmo, ambas, poesia e prosa, podem viver separadas, uma com seus sonetos, a outra com seus contos, sem perder sua natureza, muito menos sua função; qualquer um que se tenha debruçado sobre uma Ode de Álvaro de Campos, ou no Romance d’ A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, sabe muito bem do que estou falando.

Essas coisas são tão óbvias, caro leitor, e, de certo modo, tão simplórias, que é difícil de acreditar que alguém as ignore com tanta veemência, mas não faltam exemplos de que tamanha asneira prolifera-se, por aí, como baratas no esgoto, principalmente quando este esgoto são nossas Universidades, impregnadas de ideologias infecciosas e incompetências crônicas. Não faltam exemplos de idiotas que não acreditam na forma como a patente e espontânea conseqüência da idéia de um poema que – olha o Jessé de Almeida Primo, aí, de novo – carrega em si o caráter mimético que, de tal sorte, a forma vem a existir para calcular, bem como para dizer algo do texto, que o texto não diz, por mais que isto, antagonicamente, só seja possível, através do texto, por meio da “prosódia e do ritmo” que, para o autor de A natureza da Poesia, são sempre encenação de alguma coisa.

Acreditar que um soneto são simples catorze versos e não o resultado natural da concepção poética é, paradoxalmente, quase que dar crédito ao piano, pela bela interpretação de um concerto, do que ao pianista que, virtuosamente o dedilha, visto que, ao desprezar o resultado acabado, ele teria mais credibilidade em sua forma do que em sua essência. Vejamos então, leitor amigo, outro exemplo simples, também utilizado pelo Jessé Primo:


Na cinza desta tarde me comovo,
levado por lembranças tão pequenas
que me volta o desejo de partida
quando já estou bem próximo à chegada
e me sobram razões de ter ficado
sem sonhar o momento de partir
nem cultivar tenções de continuar.
Procedo como um louco que se perde
nas voltas renovadas do caminho
e sem saber repisa a mesma trilha.
Repasso o longo espaço percorrido
e me faço perguntas sem resposta.
Onde terei deixado o que perdi
ou que terei deixado ao me perder.

Os catorze versos estão aí, embora se sinta a falta dos já citados dois quartetos e dois tercetos ou, neste caso mais específico, os três quartetos e um dístico, pois se trata de um soneto inglês. Por que...? Para Jessé de Almeida Primo, há, neste belíssimo poema de Reynaldo Valinho Alvarez, um ritmo muito específico que predomina nos dose versos, levando-se em questão uma leve variação, que, por sua vez, confirmam e credibilizam o ritmo original, como na retomada de fôlego a partir do oitavo verso, no qual, ainda segundo Jessé, “tudo começa outra vez”, até a mudança mais acentuada exercida pela “uniformidade prosádica dos dois versos finais”; Jessé Primo, então, conclui que, “se a rima é igualdade de som”, como também afirmara o grande Manuel Bandeira, “neste soneto mostra ser também uma igualdade no ritmo, ou seja, a forma fixa é, antes de tudo, definida pela melopéia, de modo que, o agrupamento de versos e as rimas terminam por ser um detalhe”. Nota-se, neste soneto de Reynaldo Valinho Alvarez, uma literal poetização daquilo que Olavo de Carvalho afirma a respeito do caráter de descontinuidade do gênero poético; tanto pelo ritmo, quanto pelo tema (neste caso, novamente, a Viagem), que o verso é verso quando nele opera “algum princípio de descontinuidade”; para Olavo de Carvalho, isso pode ocorrer “pelo modo rítmico e métrico”, ou por algum tipo de “reiteração sonora”. Mas, no soneto de Valinho Alvarez, além dos princípios citados, no que concerne à sua forma, ainda se é possível considerar o próprio tema do soneto, acabando por dar ação a estes princípios, ao abordar o tema da viagem ou, à maneira lingüística hedionda dos construtivistas, da dicotomia: caminho/retorno e mesmo ganho/perda. A intenção desperta um “ritmo internalizado pelo exercício”, diz Jessé de Almeida Primo, e, desta maneira, a forma obedece e se adequa. O resultado disso, como vemos, é um soneto, e não catorze versos.


E por falar em soneto...

Se se perguntar a quaisquer alunos de nossas melhores escolas, ou, até mesmo, aos neófitos do Materialismo Histórico, os quais compõem a grande maioria de nossos universitários, não só nos cursos de Letras, mas, nas Universidades brasileiras, como um todo, sobre o que seria um soneto, ouvir-se-ia, entre ludibriações de todos os tipos (recurso muito comum àqueles que não gostam de admitir suas ignorâncias; talvez, a coisa mais honrosa que a grande maioria destas pessoas poderia fazer em vida) e retumbantes, porém dignos, “não sei!”, a resposta mais comum seria: “é um poema de quatorze versos, dividido em dois quartetos e dois tercetos”. Afirmação esta muito comum de se ouvir com relação àquilo que se perguntou (pois para a grande maioria dos alunos de Literatura, seja lá qual for o seu grau de instrução, extraviados do mais simples e decente rumo intelectual, esta será toda consideração, a respeito deste assunto, que eles terão em toda sua vida acadêmica), mas que, de longe, açambarcaria esta forma que, dentre as “castas” poéticas em que se diversifica o gênero lírico, é a que exige, de seu criador, o maior nível de intelectualidade, de concretude e de pensamento lógico-reflexivo, ou seja, a priori, o soneto precisaria ser rimado, metrificado e apresentar uma estrutura dissertativa em seu discurso, exigindo de seu autor grande conhecimento daquilo que faz e do que fala através dele (além do esqueleto estrófico tão comumente citado), que, em nada, ajudaria a compreender a grandeza e a complexidade desta forma, a qual se encontra no cerne de toda a Poesia Ocidental há séculos, e, ainda assim, é o mais sofisticado modelo poético existente, mostrando-nos, só por motivo de exemplo, que não foi à toa que parnasianos e simbolistas – tão diferentes entre si – preferiam-no, incondicionalmente.

Desde os exemplos mais clássicos, como os de Petrarca, Camões e Shakespeare, aos melhores mestres deste gênero em nossa literatura colonial e pré-moderna, como Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Machado de Assis, Raimundo Correa, Cruz e Sousa e Olavo Bilac, o soneto tem se mostrado o fim a que se dirigirem os versos de muitos dos maiores poetas do mundo há mais de meio milênio. Nem mesmo o advento do Modernismo – e, quando falo de Modernismo, não me refiro, aqui, à pantomima paulista de 1922, nem à Disney World canibalística que a ela se seguiu, antes, refiro-me àquele Modernismo onde o clássico e o novo convergiam sem nenhum tipo de inconveniência ideológica ou de extravagância lírica, como é o caso do Modernismo de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Augusto dos Anjos, logo retomado pelas gerações de 30 e 45, por exemplo – destruiu a importância e a tradição às quais o soneto se vale até os dias de hoje; pelo contrário, o Modernismo cultivou um soneto dotado de rigor e beleza como jamais se viu, mas, antes, isso, também, já se apresentava em muitos de seus precursores, em todo o mundo, a exemplo de Charles Baudelaire...


Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux;
retiens les griffes de ta patte,
et laisse-moi plonger dans tes beaux yeux,
mêlés de métal et d'agate.

Lorsque mes doigts caressent à loisir
ta tête et ton dos élastique,
et que ma main s'enivre du plaisir
de palper ton corps électrique,

je vois ma femme en esprit. Son regard,
comme le tien, aimable bête,
profond et froid, coupe et fend comme un dard,

et, des pieds jusques à la tête,
un air subtil, un dangereux parfum,
nagent autour de son corps brun.



de Fernando Pessoa...

Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
que, embora não o sintas, tu escondes
a grande dor da minha morte.

Irás de Londres pra York, onde nasceste
(dizes —Que eu nada que tu digas acredito…)
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes

(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará. Depois vai dar

a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande…
Raios partam a vida e quem lá ande!...

Augusto dos Anjos

Que força pôde adstrita e embriões informes,
tua garganta estúpida arrancar
do segredo da célula ovular
para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
suficientíssima é, para provar
a incógnita alma, avoenga e elementar
dos teus antepassados vermiformes.

Cão! - Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
a escala dos latidos ancestrais...

E irás assim, pelos séculos, adiante,
latindo a esquisitíssima prosódia
da angustia hereditária dos teus pais!


* * *


Se, para Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em épocas mais romanescas, o poeta, ao compor um bom soneto, não descreve, de forma ingênua, as disposições da alma, as aspirações, as dores, os desejos, as percepções das coisas a sua volta, com uma grande concentração interior, antes, dirige, com calma e precisão, o seu olhar aos mitos, à história, ao presente, no mesmo momento em que se reintegra a si mesmo, limitando-se e se contendo, tornando o soneto uma das construções mais complexas e difíceis em que um poeta pode se aventurar, para o Modernismo, esta prática se torna mais difícil e mais fluida. Em outras palavras, mais complexa para o seu autor, mas compreensível a quem o lê.

Segundo César Leal, em Os Cavaleiros de Júpiter, “o elemento protéico do soneto é o pensamento reflexivo”, mesmo quando este “alcança uma ordenação mágica como é freqüente em Jorge de Lima”. É, no soneto, que conhecimento, ciência e instrução geral se fundem com legitimidade, por isso mesmo, no Modernismo, apesar do descrédito e difamação de muitos, o soneto se aperfeiçoou, tornado-se, inclusive, “independente e diverso em relação aos modelos clássicos” – afirma César Leal –, apresentando – ainda de acordo com o poeta e ensaísta pernambucano – “traços estilísticos inconfundíveis”, como são os casos de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Vinícius de Moraes, Bruno Tolentino, Sosígenes Costa, Mário Quintana, Emílio Moura, Ariano Suassuna, Dante Milano, Ildásio Tavares, Carlos Pena Filho e até mesmo Carlos Drummnd de Andrade e Ruy Espinheira Filho... isso sem falar no pioneirismo de Augusto dos Anjos e em autores menos conhecidos, ou, naqueles, onde a tradição do soneto não acompanha a obra do autor, embora por lá se encontrem exemplos magníficos como os de Edmir Domingues, Florisvaldo Mattos, Maria da Conceição Paranhos e ainda, mesmo que escassos, Ferreira Gullar e Hilda Hiltz, além de Reynaldo Valinho Alvarez (cuja máxima intensidade de sua poesia é justamente alcançada em seus sonetos peculiaríssimos), entre outros tantos que agora me escapam à lembrança.

O soneto moderno – como todo bom poema de qualquer época – deve estar pleno de sentido, de significados, e não ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso; deve aparecer e soar ao seu leitor dentro de uma “imaginação auditiva” (lá vem o César Leal, de novo), tão comum em Milton, segundo T. S, Eliot, como no próprio Eliot, mas também em Castro Alves e até mesmo em Ascenso Ferreira, e, por recortar uma realidade instigante, por ter uma penetração psicológica muito intensa, por proporcionar uma fácil compreensão de tudo e de si mesmo, é uma obra da razão recortada pelos malabarismos lingüísticos e dos signos comuns, como é o caso, amigo leitor, deste extraordinário soneto de Antônio Brasileiro que, à maneira da inovação formal proposta por mestres como Jorge de Lima, e mantendo aquela tradição oral e simbólica comum em Vinícius, é-me uma das mais belas realizações do gênero e, a ele, pode-se aplicar todos os conceitos que acabei de discorrer, neste artigo:


Não passar. Ficar para semente.

Não era isto que meu pai queria?
Sentava-se na rede e adormecia
julgando ter domado a dama ausente.

E sonhava talvez. Talvez menino
montando burros bravos, nu, ao vento;
um homem é a sua ação sobre o destino.

Meu pai então fazia um movimento
e a rede, a adormecer, estremecia:
pequenos sustos no tempo, era só isto.

E escancarava os olhos duramente
para mostrar que se Ela o procurava
era de cara a cara que A encarava.

Que Deus guarde meu pai. Eternamente.

Candeias/Feira de Santana, março de 2009/abril de 2010.

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Poeta Silvério Duque

* Idade: 31
* Sexo: Masculino
* Signo astrológico: Áries
* Ano do zodíaco: Cavalo
* Atividade: Artes
* Profissão: Professor
* Local: Feira de Santana : Bahia : Brasil

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